*** Este texto foi escrito, e deve ser lido, ao som de Toquinho ***
http://www.vagalume.com.br/toquinho/aquarela-original.html
As
últimas 48 horas vinham sendo difíceis, não há como negar. Bolão da Copa nas
páginas policiais... Depoimento na delegacia... Lucas acordando no meio da
noite... Reuniões com advogados... Conversas com a Andréa... Conversas com o
meu pai... Neymar fora da Copa...
Com
tudo isso na cabeça, estava difícil pegar no sono. A Andréa, também cansada com
tudo isso, felizmente conseguiu dormir. O Lucas, dessa vez, pegou no sono,
provavelmente mais relaxado. Mas eu, nada! Virava para um lado, virava para o
outro, virava de volta, e nada. Não sabia mais o que fazer. Por um lado estava
cansado e, sinceramente, de saco cheio. Por outro, não conseguia pegar no sono
de jeito nenhum.
Tive
então uma ideia. Será que o amigo Miguel Oliveira me emprestaria a mãe dele, para
uma conversa, quase terapia? Porque desde pequeno eu aprendi que nas
dificuldades é saudável ouvir as pessoas mais experientes. E quem melhor do que
a Dona Glacy para conversar comigo sobre os acontecimentos das últimas 72
horas? Para quem não sabe, a Dona Glacy tem 89 anos e é a terceira colocada no
Bolão da Copa do Mundo. Muitos se surpreendem com o resultado, mas o Dani matou
a charada de forma inequívoca: “Pedrinho,
entre todos os participantes, ela é a única que acompanhou todas as Copas do
Mundo realizadas até hoje. Assim fica difícil competir”.
Não
poderia ligar para a Dona Glacy no meio da noite. Então resolvi fechar os olhos
e conversar com ela à distância.
EU: “Oi Dona Glacy, aqui é o Pedrinho,
organizador do Bolão. Não consigo pegar no sono”.
DONA GLACY: “Oi Pedrinho. Não se preocupe,
vou contar uma estorinha para você dormir”.
DONA GLACY: “Eu acompanhei todas as Copas do
Mundo até hoje. Em 1930, no Uruguai, tanto eu quanto a Copa do Mundo éramos
imaturos, bem pequenos. Não era fácil acompanhar os resultados. Tivemos que
ficar um tempo sem Copa para resolver uns problemas entre os países na década
de 40. E na hora de voltar, a Copa foi na nossa casa. O ano era 1950. Eu tinha
20 e poucos anos, e queria muito ver o meu país campeão. Os jogos foram
passando e começamos a acreditar que ganharíamos o título. Até que na final
aconteceu aquilo que todos vocês já sabem”.
EU: “Foi realmente muito triste perder aquela
Copa em casa”?
DONA GLACY: “Olha Pedrinho, triste foi. E
muito. Mas uma das coisas que a gente aprende com o passar dos tempos é
aprender com as coisas ruins que acontecem em nossas vidas. Sem aquela derrota
em 1950, o Brasil jamais estaria pronto para se tornar a maior potência do
futebol mundial. A Copa de 1950 foi um mal necessário para chegarmos onde
chegamos”.
DONA GLACY: “O tempo foi passando, e tanto eu
quanto a Copa do Mundo fomos amadurecendo. Passamos por Copas do Mundo na época
da ditadura, nas épocas em que não podíamos sequer votar, nas épocas da
inflação, nas épocas das desigualdades sociais recordistas no mundo, nas épocas
de crescimento econômico, nas épocas da corrupção. E cada Copa do Mundo foi nos
ensinando uma coisa nova. Aliás, o tempo nos ensina tanta coisa Pedrinho, que
não tens nem ideia”.
EU: “E agora a Copa do Mundo voltou pra casa,
né Dona Glacy”?
DONA GLACY: “Isso mesmo Pedrinho. Só que
dessa vez a Copa está sendo um pouco diferente. Aqui no nosso país, acompanhar
os jogos do Brasil em família sempre foi uma rotina durante as Copas do Mundo.
Mas desta vez, com essa maluquice desse bolão, nós estamos acompanhando os 64
jogos em família. Essa convivência em família é tudo que eu poderia desejar nesse
momento da minha vida. Aliás, sabias que o meu filho, todo metido a entendedor
de futebol está na posição 338”?
EU: “O Miguel? Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk”.
DONA GLACY: “Mas não vem rir muito. Pior tu,
que está na posição 409”.
EU: “Pô Dona Glacy, corneta para cima de mim
nessa hora”?
DONA GLACY: “Meu filho, não existe hora certa
para uma corneta; uma boa risada é bem vinda em qualquer momento”.
EU: “Então o Bolão é uma coisa boa, e não um
caso de polícia”?
DONA GLACY: “Ora Pedrinho. Ao longo desses
anos, eu convivi com resquícios de escravidão, tortura, queimas de arquivo,
censura, chacinas, sequestros, assassinatos, corrupção generalizada. Eu sei bem
o que é crime. O único crime que o Bolão comete é quando um time empata aos 46
do segundo tempo e isso me tira uns pontinhos no Bolão. Isso sim deveria ser
proibido”.
EU: “Mas disseram que o Bolão estava sendo
investigado no jornal e na TV. Eu fiquei morrendo de vergonha”.
DONA GLACY: “Meu filho, vou lhe ensinar uma coisa
sobre vergonha. A vergonha é um sentimento dos mais nobres que existe. Só não
tem vergonha quem não tem caráter. Essa gente que resolveu inventar que estavam
investigando o Bolão provavelmente não conseguiu se inscrever a tempo. Até
porque tu sabes, né Pedrinho, quem é incompetente é incompetente e pronto. Ter
ficado de fora da brincadeira deve ter doído. Imagina só: toda a cidade só fala
no tal Bolão. Aliás, ouvi falar que são mais de 50 cidades no Bolão. Até os
órgãos de imprensa famosos, aqueles onde os medíocres jamais trabalharão, estão
cobrindo o Bolão. Pedrinho, com o perdão da palavra, um ditado que nunca saiu de
moda é A INVEJA É UMA MERDA”.
EU: “kkkkkkkkkkkkk, Dona Glacy, assim tu me faz
rir de novo. Mas tu não achas muita falta de sensibilidade se publicar algo de
forma tão irresponsável”?
DONA GLACY: “Pedrinho, já notei que tu tens
um problema muito comum nos jovens da tua idade. Tu fica esperando das pessoas
o que elas não são capazes de fazer. As pessoas têm ou não têm sensibilidade.
Elas têm ou não têm competência. Isso não é algo que se possa comprar na
farmácia. Algumas pessoas jamais entenderão o que é comemorar um gol da Argélia
como se fosse a coisa mais importante do mundo. Meu filho, dessa gente eu só
consigo ter pena, nunca raiva. Imagina que inferno que deve ser uma vida sem alegria”.
EU: “Mas dá vontade de responder”.
DONA GLACY: “Pedrinho, vou te dizer mais:
responder com o silêncio às vezes é algo muito mais nobre do que descer ao
nível dos medíocres. A resposta com o silêncio é a segunda mais dolorosa que
existe para os medíocres. A primeira, até um jovem da tua idade já aprendeu:
responder com mais alegria”.
EU: “Não entendi. Acho que vais ter que
desenhar”.
DONA GLACY: “Ora Pedrinho. O objetivo dos
medíocres é atrapalhar, incomodar. A pior resposta possível para eles é notar
que apesar de seus esforços medíocres, o show vai continuar, cada vez mais
forte. Não existe resposta melhor do que essa”.
EU: “Mas tenho que confessar que fico com
vontade de chorar com isso tudo”.
DONA GLACY: “Olha Pedrinho, então chore.
Aliás, a capacidade de chorar é mais uma coisa que separa os homens dos
medíocres. Te garanto que eles não vão chorar pela cagada que fizeram. Não são
capazes. Chore o máximo que puderes. Porque quem chora de tristeza pode chorar
também de alegria. E poucas coisas no mundo são melhores do que chorar de
alegria”.
EU: “Pô Dona Glacy, eu sabia que essa
conversa seria boa. Deixa eu aproveitar para te perguntar mais uma coisa: e
agora, o que faremos sem o Neymar”.
DONA GLACY: “Ora meu filho, vamos seguir em
frente. Tu não entendeu nada do que eu te falei até agora? Eu não te disse que
algumas coisas, supostamente ruins, na verdade são preparações para as coisas
realmente boas? Eu não te falei na importância da família? Eu não te falei sobre
crescer nas dificuldades”?
EU: “Falou sim”.
DONA GLACY: “Então pega tudo isso e
simplesmente muda o assunto de BOLÃO para NEYMAR. Perdemos o Pelé na Copa de
1962 e cutucamos o Garrincha. Perdemos o capitão em 2002 na véspera, e olha o
que aconteceu. Se é a nossa vez, será a nossa vez com ou sem Neymar. Se não é a
nossa vez, não seria com Neymar e não será sem Neymar.
EU: “Muito obrigado Dona Glacy. Agora eu vou
dormir. Estou muito mais relaxado”.
DONA GLACY: “Vai lá meu filho. Eu ainda tenho
que decidir se aposto contra ou a favor dos argentinos amanhã”.